
Com alguns anos de atraso, finalmente assisti "The Reader". Gostei do filme e achei que ele deixa algumas coisas em aberto, o que é sempre interessante. Ele amou ela a vida inteira ou age por culpa (ou qualquer outro motivo)? Mas enfim, nao vou exatamente falar do filme aqui, mas aviso que pode haver spoilers (nunca falo sobre filmes aqui e nao sei como fazer isso de uma forma que nao estrague a trama pra quem ainda nao viu). Eu queria falar da forma como filme retrata a Hanna, especialmente durante o julgamento. Ela foi uma guarda nazista e o que faz ela ser condenada à prisao é o fato de ter fechado as portas de uma igreja onde dormiam algumas prisioneiras, enquanto havia um incêndio no local, causando por isso à morte da maioria delas. A resposta da Hanna é

Essa forma de retratar um crime, como algo feito por alguém que apenas estava cumprindo seu dever, tem origem na tese da Hannah Arendt (nao confundir com a Hanna do filme) sobre a "banalidade do mal".
Hannah Arendt elaborou essa idéia no livro Eichmann em Jerusalém, a partir do processo do Eichmann, e a banalidade do mal acabou virando um conceito explicador do mal nas sociedades tecnocràticas : numa sociedade em que tudo é medido em termos de técnica, eficiência e eficàcia, as pessoas se acostumam a simplesmente cumprir ordens; nao hà nenhum tipo de reflexao moral sobre o teor e o fundamento dessas ordens. O Eichmann retratado pela Arendt é um funcionàrio-modelo, que cumpre ordens com eficiência e com um elevado sentido de "dever".
Hà dois problemas essenciais sobre essa "tese". O primeiro deles é que a Hannah Arendt jamais quis fazer da idéia de banalidade do mal uma tese, um conceito ou um principio.

O segundo é que Hannah Arendt compôs essa idéia através do processo do Eichmann, mas que ela nao acompanhou o processo inteiro. A parte que ela acompanhou foram os procedimentos de acusaçao, em que o Eichmann se mostrava apàtico, apagado, o que para a autora retratava um funcionàrio eficiente e pouco reflexivo. Bastante parecido com a Hanna da Kate Winslet, durante o julgamento.
Soh que, durante sua defesa - que a Arendt nao acompanou, repito - Eichmann se mostrou inteiramente diferente. Mais enérgico e eloquënte, bem diferente do homem descrito pela Hannah Arendt.
A partir desse "erro historico", criou-se todo um sistema de pensamento no qual a sociedade moderna é vista como um berço potencial da banalidade do mal. Na medida em que as pessoas produzem e reproduzem o mal sem se dar conta disso, qualquer um de nos pode ser o vetor desse mal. Este individuo moderno e tecnocrata pode ser eu, você e cada um de nos. O mal nao é mais visto como algo que pode ser identificado através do recurso à moral, pq essa moral pode ser, ela mesma, parte daquele mal sistêmico.
Enfim, no meio de tantas coisas que poderiam se ditas sobre The Reader, essa é a que me chamou atençao; ela reflete um problema real que a teoria social enfrenta, e a questao de esse problema ter sido fundado num "erro historico" é um pouco perturbador. Se a banalidade do mal é vista como chave de interpretaçao para o mal moderno, torna-se muito dificil fazer todo e qualquer julgamento de valor : eu nao posso apontar no outro um mal que ele nao produziu conscientemente, e que eu também poderia produzir pq sou parte desse mesmo sistema que o envolve.
Mas para além disso, a pergunta que fica é : uma boa filosofia pode ser feita a partir de uma historia equivocada?