sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

The Reader e a banalidade do mal


Com alguns anos de atraso, finalmente assisti "The Reader". Gostei do filme e achei que ele deixa algumas coisas em aberto, o que é sempre interessante. Ele amou ela a vida inteira ou age por culpa (ou qualquer outro motivo)? Mas enfim, nao vou exatamente falar do filme aqui, mas aviso que pode haver spoilers (nunca falo sobre filmes aqui e nao sei como fazer isso de uma forma que nao estrague a trama pra quem ainda nao viu). Eu queria falar da forma como filme retrata a Hanna, especialmente durante o julgamento. Ela foi uma guarda nazista e o que faz ela ser condenada à prisao é o fato de ter fechado as portas de uma igreja onde dormiam algumas prisioneiras, enquanto havia um incêndio no local, causando por isso à morte da maioria delas. A resposta da Hanna é que as presas estavam sob responsabilidade dela; ela nao podia abrir a porta, pq ia ser o caos e ela ia perder o controle de suas prisioneiras. Em suas respostas, Hanna afirma que estava fazendo o que devia ser feito - seu trabalho - e parece nao entender bem pq é acusada de matar pessoas.

Essa forma de retratar um crime, como algo feito por alguém que apenas estava cumprindo seu dever, tem origem na tese da Hannah Arendt (nao confundir com a Hanna do filme) sobre a "banalidade do mal".
Hannah Arendt elaborou essa idéia no livro Eichmann em Jerusalém, a partir do processo do Eichmann, e a banalidade do mal acabou virando um conceito explicador do mal nas sociedades tecnocràticas : numa sociedade em que tudo é medido em termos de técnica, eficiência e eficàcia, as pessoas se acostumam a simplesmente cumprir ordens; nao hà nenhum tipo de reflexao moral sobre o teor e o fundamento dessas ordens. O Eichmann retratado pela Arendt é um funcionàrio-modelo, que cumpre ordens com eficiência e com um elevado sentido de "dever".
Hà dois problemas essenciais sobre essa "tese". O primeiro deles é que a Hannah Arendt jamais quis fazer da idéia de banalidade do mal uma tese, um conceito ou um principio.
O segundo é que Hannah Arendt compôs essa idéia através do processo do Eichmann, mas que ela nao acompanhou o processo inteiro. A parte que ela acompanhou foram os procedimentos de acusaçao, em que o Eichmann se mostrava apàtico, apagado, o que para a autora retratava um funcionàrio eficiente e pouco reflexivo. Bastante parecido com a Hanna da Kate Winslet, durante o julgamento.
Soh que, durante sua defesa - que a Arendt nao acompanou, repito - Eichmann se mostrou inteiramente diferente. Mais enérgico e eloquënte, bem diferente do homem descrito pela Hannah Arendt.
A partir desse "erro historico", criou-se todo um sistema de pensamento no qual a sociedade moderna é vista como um berço potencial da banalidade do mal. Na medida em que as pessoas produzem e reproduzem o mal sem se dar conta disso, qualquer um de nos pode ser o vetor desse mal. Este individuo moderno e tecnocrata pode ser eu, você e cada um de nos. O mal nao é mais visto como algo que pode ser identificado através do recurso à moral, pq essa moral pode ser, ela mesma, parte daquele mal sistêmico.

Enfim, no meio de tantas coisas que poderiam se ditas sobre The Reader, essa é a que me chamou atençao; ela reflete um problema real que a teoria social enfrenta, e a questao de esse problema ter sido fundado num "erro historico" é um pouco perturbador. Se a banalidade do mal é vista como chave de interpretaçao para o mal moderno, torna-se muito dificil fazer todo e qualquer julgamento de valor : eu nao posso apontar no outro um mal que ele nao produziu conscientemente, e que eu também poderia produzir pq sou parte desse mesmo sistema que o envolve.

Mas para além disso, a pergunta que fica é : uma boa filosofia pode ser feita a partir de uma historia equivocada?