segunda-feira, 15 de agosto de 2011

french navy


Um dia vou conseguir escrever sobre minha relaçao de amor e odio com a França. Mas morando aqui, algo em relaçao ao qual eu realmente adquiri afeto foi a lingua francesa. Eu nem sei explicar, pq eu sempre preferi o italiano, e nao acho o francês super bonito nem "sexy", como muita gente. Mas eu amo falar francês, amo qua
ndo dizem que falo bem, apesar da eterna frustraçao de que é bem pouco provàvel que eu venha, um dia, a falar como uma francesa - sem sotaque*. A primeira vez que eu vi um sentido em estar aqui - e na época, trabalhando de babà - foi quando começadram a elogiar meu francês; foi como se, finalmente, esses meses em terra estranha com gente esquisita valesse alguma coisa: se nada der certo, eu falo francês! Claro que a coisa se dà em camadas e "niveis" de linguagem - se me botarem pra conversar com um malaco, que soh fale girias, eu vou ter dificuldade pra entender o que ele fala. Mas enfim, existem bem poucas coisas que a gente pode falar que aprendeu definitivamente, de uma vez por todas, sem precisar se aperfeiçoar. Ademais, esse é também o charme da lingua francesa: à primeira vista, muito "dura", muito formal, cheia de nuances e frescuras - mas, ao mesmo tempo, cheia de invençoes, de girias, de subversoes. Eu acho que as expressoes àrabes sao uma forma de subversao à lingua oficial, uma demonstraçao de que as dinâmicas sociais sempre escapam ao controle de fronteira. Ao mesmo tempo, sao também um indicio da nao-integraçao dos imigrantes; uma das minhas palavras preferidas, em francês, é bled, que vem do àrabe
"casa", e que eles - imigrantes e descendentes - usam quando dizem que vao pro pais de origem: "vou passar minhas férias no bled". Ou seja, de certa forma, a ligaçao com esse lugar de origem é forte - é a "casa" - pq eles nao se sentem integrados. Mas isso é outro assunto. Também adoro clebs (cachorro), que também vem do àrabe. E pra nao dizerem que eu fico puxando sardinha pro meu devir marroquina, também adoro mytho, mentiroso, que na verdade é abreviaçao de mythomane: mitômano. Parece palavra dificil, mas todos os adolescentes falam, e eu acho hilàrio: "você nao passa de um mytho!"

*Em relaçao aos sotaques. Uma vez um professor - de inglês - alertou a turma pra pronùncia de tal palavra (nem lembro qual), dizendo que, se a gente a pronunciasse de tal forma, as pessoas imediatamente saberiam de onde a gente é. Dai eu pensei, poxa, qual o problema disso? Eu tenho orgulho de onde eu venho. Quando os alunos no colègio riam de algum erro, eu repetia a mesma coisa - eu tenho orgulho de ser estrangeira. Mas é inevitàvel me sentir frustrada por às vezes confundir "in" e "an" - eu acho o som super parecido (foneticamente: [ɛ] e [ã]), mas pra eles é super diferente. E, pessoalmente, eu acho sotaque desleixado muito feio.


O outro lado da moeda é que os franceses tendem a achar que a lingua é deles, e que o sotaque é dos outros: dos canadenses, por exemplo, ou dos descendentes de imigrantes - que nasceram aqui e muito francês tem a coragem de comentar que ele tem um "sotaque estrangeiro" - se ele nasceu aqui, e se ele tem o francês como lingua-mãe, dizer que ele tem sotaque é o mesmo que retirar o direito dessa pessoa a ter uma lingua. E a lingua é dinâmica, ela nao é de ninguem, como pensam os franceses em um eterno delirio narcisista. Eh digno de nota que, quando um francês quer te atacar sutilmente, seja por brincadeira, seja por provocaçao, seja por maldade, ele te ataca pela lingua: "isso que vc disse nao é francês" (e muitas vezes EH, e eles dizem que nao pq sao fdp mesmo).


Mea culpa: eu jah utilisei o francês como forma de exclusão social, com uma menina que eu nao tinha ido com a cara. A sujeita vira pra mim e diz "eu jamais viria de au pair, trabalhar de mao de obra barata", soh faltou um "eca!". E como estàvamos entre franceses, e ela tinha chegado a pouco tempo, passei o tempo todo falando francês, o que de certa forma fez com que as outras pessoas também falassem (embora soubessem português), e ela ficou boiando na conversa

Mas ela mereceu.

3 comentários:

Anônimo disse...

Hahaha! Muito boa a exclusao da menina! Nesses casos, quando não é pra tirar o direito de todo um grupo que está lá, acho bem feito mesmo.

Sobre esse purismo todo da língua, acho engraçado (e triste) e acho que isso é bem característico dos franceses mesmo. Porque fiquei pensando nos outros idiomas com os quais eu tive um bom contato e mesmo na Alemanha, que seria o de idioma mais restrito (nao como inglês e espanhol), ninguém é fanático assim quanto à língua e, na verdade, vão até no caminho inverso. Eles usam mesmo a possibilidade incrível que o alemão dá de formar e transformar palavras, adotam palavras estrangeiras sem nenhum medo (claro, meio que alemanizam elas, colocam na estrutura alemã, mas elas estao lá)... Enfim, acho interessante ver essas diferenças tão grandes em países vizinhos.

E isso aí, Marthcénha! Voltando a publicar! Eu vou dar uma lida em outros posts daqui q ainda nao tinha lido... =)

Branquinha disse...

Ei Martha,
Quanto tempo!!! Gosto muito de ler suas reflexões... seu texto ficou ótimo!
Sinto falta de lucidez, principalmente porque ando transitando entre incautos e brutos...
Abraços,

Isis

marthacomth disse...

Olévia, mas a questao é que o francês é as duas coisas ao mesmo tempo.. Quer dizer, eu nao conheço o alemão e meu inglês anda mal das pernas, mas eu acho, sim, que o francês tem certa capacidade de "absorver" palavras estrangeiras - mas em um nivel, digamos, mais informal. No nivel formal, quando vc nao conhece bem a lingua, ou quando vc està falando com alguma versao francesa do professor Pasquale, claro que eles sao hiper conservadores e avessos à tudo isso. O francês é uma lingua que nao passa por reformas gramaticais hà muito tempo, de tao conservadores que eles sao com a propria lingua (e narcisistas, sempre). E convenhamos que uma reforma gramatical nao iria mal, pq tem PENCAS de letras que nao servem pra nada no meio das palavras.
Mas enfim: quando vc interage com pessoas mais "normais", elas vao usar eventualmente uma palavra em àrabe - a frequência com que isso é feito aumenta quando vc vai em direçao à periferia. Mas uma vez uma aluna do colégio me perguntou "vc nao sabe o que é KIFFER? é do francês" - e kiffer na verdade vem do àrabe! E ela nao era descendente de àrabe, vale observar.
Tem vàrios termos em inglês tb ("stopper" aqui é um verbo!! que as pessoas ESCREVEM! nao em um trabalho de faculdade, mas em cartazes ou outdoors sim, por exemplo!!). Enfim, nisso é um pouco parecido com o português (como a gente incorporou delete e vàrias outras coisas e tranformou em verbo).
Mas eu acho super bacana quando é com o àrabe pq tem um peso simbolico todo especial, né.
Pra resumir esse discurso todo, o que eu queria dizer é que hà dois niveis de francês - o oficial e o que corre pelas beradas, "subvertendo". Nao sei se dà pra comparar com o alemão, mas com certeza é mais do que em português!


e Isis, obrigada! :) Mas a lucidez aqui nao é tanta assim, hahaha :o)